sexta-feira, 13 de julho de 2018

Um Bairro Qualquer de Fortaleza

    No momento eu só conseguia pensar em como desviaria daquela grande mão vindo de encontro à minha têmpora. Se ele me acertasse, seria um golpe em cheio, caso não, ele estaria fodido. Ou não, de qualquer forma. Antes de me meter nessa confusão eu já estava tentando sair de outra.



      Eu estava deprimido, morrendo numa casa alugada no Mondubim. Três dias antes eu havia perdido o emprego. Eu era caminhoneiro. Viajava de estado a estado, dia e noite. Pelo dia, eu observava os bons trabalhadores que tinham uma casa bonita, uma bela esposa e belos filhos como eles sempre sonharam. Pela noite, eu estudava os homens solitários (às vezes solitários por estupidez) que procuravam refúgio nas pernas de alguma prostituta encontrada nas beiras de estrada. Algum dia um dos lados será brutalmente assassinado pelo outro.
      Como perdi meu emprego? Nem se importaram em saber, eu sei. Eu também não estaria. Acontece que eu já estava cansado desses filhos da mãe me fazerem de besta. Estavam sempre pagando atrasado e inventando alguma desculpazinha estúpida. Então da última vez que isso aconteceu eu fiquei realmente aporrinhado. Tomei um porre e fui conversar com o "chefe". O escritório do canalha era confortável de tão organizado; fedia a pura fumaça de papel queimado. Puxei a cadeira vagarosamente, sentei-me encarando por um bom tempo aqueles olhos carregados de alguma essência de ganância. Sua face expressava seriedade, como se estivesse controlando a situação, mas eu mesmo não estava ouvindo palavra alguma que aquele merda dizia. Então o interrompi:
     - Pois é, macho... cadê esse pagamento? - perguntei-lhe num tom calmo e firme. - Cadê?
     - Foi o que acabei de dizer. É "surdé"? Tá aqui não. Você sabe muito bem que quando chega nós avisamos. E...
     Foi nesse exato momento que explodi como uma bomba nas mãos dele:
     - PORRA! - Gritei levantando da cadeira como se o fosse atacar, como um lobo diante de um cordeiro indefeso. Seu rosto cínico me causou desprezo. - É SEMPRE ASSIM, TODA VEZ QUE VENHO BUSCAR ESSA MERDA, TU ME DIZ QUE NÃO TÁ AQUI, MACHO. POIS TU PEGA ESSE DINHEIRO E ENFIA TODO NO CU, "FI" DE RAPARIGA!
     Após uma troca de palavras atropeladas e xingamentos por cima de xingamentos, ele voou para cima de mim e brigamos por meia hora antes dele pôr minha bunda para fora da empresa. Mas foda-se, eu estava com o dinheiro na mão. Desde então comecei a fumar feito Caipora e a beber que só a porra.
     Gastei todo o dinheiro.
     Estive quebrado e o aluguel atrasou. Fui chutado. Voltei a morar com minha Vó e a escutar todo tipo de ofensa, coisas como: "Você já tem tem 37 anos anos, meu filho. Amadureça." ou "Você é um maldito vagabundo. Quando eu morrer, rapaz, você vai ficar é perdido. Isso se já não tiver, né?..."
     Meses depois, ela se foi desta vida. Agora ela deve estar cagando minha imagem em algum lugar amaldiçoado por aí. Triste.
     
     Depois da morte dela eu não tinha lugar algum, senão os botecos da cidade. Eu estava sempre acordando com o bar e quase sempre o pondo para dormir. Uma vez ou outra passavam por mim belas pernas deixando as flores grotescas desse jardim perdido mais suportáveis ao mundo. Mas estamos todos cansados demais para isso. E outra: que porra haveria entre a gente? No máximo lhe pagaria uma dose e conversaria um pouco antes dela seguir sua vida e eu, a minha.
     Num desses dias lentos e deprimentes, conheci um velho pernambucano que trabalhou num desses trens de carga. Anselmo de alguma coisa, não lembro o sobrenome dele. Eu lhe disse que deve ser o melhor trabalho no mundo, pois você está sempre sozinho com a noite ao seu lado, mesmo sabendo que a solidão pode te matar às vezes.
     Após muita conversa jogada fora e muita bebida despejada nos nossos abençoados fígados, apareceu um cara mal-encarado. Não fui com sua cara, julguei mesmo, mas eu não estava procurando confusão. Anselmo, velho homem, guerreiro do tempo. Beirava seus 64 anos de estrada, não dizia muita coisa mas podia ainda defender a própria identidade, pelo menos.
     Depois de passar uma boa olhada no grandão que chegou, ele virou para mim e disse, com os olhos fixos no cara, ainda:
     - "Home", tá doido. Esse é o "féla" da puta do meu chefe...
     - Como é, rapaz? Teu chefe? E tu trabalha ainda, "caba" mentiroso? - Respondi voltando os olhos novamente para o tal do chefe.
     - É ele mesmo, rapaz. É o Carlos. Sabzu u nho von de fzer quele?
     - Como é que é, rapaz? - Pergunto confuso por não entender as palavras arrastadas dele.
     E como um maldito relâmpago, ele levantou e jogou a cadeira nas costas de Carlos, que no mesmo instante partiu para cima dele como um urso. "Puuuu-ta-que-pa-riu!" era tudo que passava pela minha cabeça nessa hora. Também levantei da cadeira e desferi um gancho no estômago dele e, em seguida, uma direita no queixo que o fez retroceder. Eu estava tão bêbado mais esse Anselmo que eu senti que podia fazer qualquer coisa e ainda passaria impune sobre tudo e todos. Anselmo chegou logo foi com duas garrafas de vidro; uma de cachaça e outra de cerveja. Ouvi ele proferir: "É hooooje que eu maaaato esse "fí" de cooorno!". Me senti próximo a uma divindade por um instante, e no outro instante sentia-me perto de um assassino.
     Anselmo ardeu em chamas e tentou furá-lo, mas alguém (pelas graças ou qualquer coisa) o impediu. Ele gritou meu nome e jogou uma das garrafas e num sei como eu consegui pegar. No entanto, antes que eu pudesse golpeá-lo com toda a minha força, só vi foi aquela mão sorrindo com dentes de carne e osso para minha boca. O tempo parou. Minha respiração parou. E fui para o chão. Sem chance. Toda minha visão embaçou, mas sei que ele iria matar o velho então levantei do chão como uma fênix que ressurge das cinzas, no meu caso foi de uma pocinha de sangue, álcool e imundice. Procurei por qualquer objeto. Peguei uma garrafa de algum canto. E antes que Carlos pudesse fazer qualquer coisa com o velho, que também brigava bravamente, o peguei como um filho da puta e reduzi a garrafa a pedacinhos em sua cabeça. PLAH! O barulho ecoou por todo o bar. Vidro para todo lado. Minha mão cheia de sangue. Só lembro daquela gente gritando e os flashes dos celulares.
     Carlos caíra duro no chão. O velho bufava de raiva, apenas o observando e largando em cima dele maldições. Devia estar descarregando as humilhações que passou para desfrutar da vida que nunca realmente teve. Eu acho que o Anselmo é só um mentiroso perdido e doido.
     Atravessei aquele mar de gente, com uma mão na ferida e a outra procurando num sei o quê entre os bolsos, acho que era um cigarro, lembro não. Sabia que não tinha nada, mas conferi mesmo assim. E finalmente cheguei na rua, começou uma chuvinha boa que me fez lembrar que a Morte é tão ruim que me deixou vivo só pra eu me lascar mais uma vez por aqui. A imundice misturada com sangue descia sobre meu corpo, me senti abençoado. No final de tudo, estamos todos fodidos: eu, Anselmo, Carlos, meu "chefe"... todos nós. Esse foi o último pensamento que tive antes de mergulhar no chão frio de um bairro qualquer de Fortaleza.


lucas matheus 04/11/16
 "eu e eu mais meu gato morando no campo"
edição no computador de um desenho da parede do meu quarto
2017
lucas matheus

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